sábado, 28 de junho de 2008

Delusão

Há uma diferença entre os conceitos de ilusão e delusão: enquanto o primeiro invalida a experiência, o segundo (muito mais sofisticado) apenas a relativiza. No cinema, mergulhamos no filme, seguimos o protagonista com nossos olhos e pulmões. Ele morre, nós choramos. Enquanto estamos movidos pela história, nos esquecemos de que aquilo é uma projeção dentro de um cinema dentro de um shopping dentro de uma cidade. Tudo feito por atores, diretores, roteiristas. Esquecemos que estamos sentados em uma cadeira, que antes estávamos rindo comendo pipoca ou que aquele ator já fez um personagem completamente diferente. Porque ignoramos as realidades fora do universo do filme, somos fisgados.

Um filme não provoca ilusão, mas delusão: enquanto focamos o filme, esquecemos que há o cinema. Em nossa vida, ocorre o mesmo. Mergulhamos em uma história, incorporamos um personagem, seguimos com pulmão e coração até o fim do drama, que parece o fim do mundo, de fato. A delusão do filme dura 2 horas; a da vida, 2 anos ou décadas. Esquecemos que antes sequer conhecíamos a pessoa pela qual hoje sofremos. E vivíamos bem, sem problemas, não é mesmo? Lembrar disso é sustentar nossa liberdade, escapar da delusão.

Sempre que sofremos, achamos que fizemos algo de errado. E quando nos alegramos, sentimos que acertamos. Esse é um grande equívoco. Pois para a dor surgir não fizemos nada de errado! E a alegria não veio de acerto algum! Eis nossa condição: estamos dentro de um filme que nos apresenta um dilema impossível de ser resolvido. Os conflitos continuarão a aparecer e, para complicar a situação ainda mais, a morte virá com tudo. Não temos chance alguma.

Filme sem saída, história após história, ausência de resolução final. Sua amiga vem chorando e fica algumas horas explicando por que acabou com o namoro de 7 anos. Ela não aguenta mais sentir o peito doendo: “O que eu faço, me diz?”. Você tem duas opções. Na primeira, conversa, analisa argumento a argumento, abraça, chora junto, ri, sai para dançar… Isso se chama terapia (cognitiva ou emocional). Na segunda, você olha bem no fundo dos olhos dela e sussurra: “Acorda!”.

O melhor dos conselhos não foca o conteúdo, mas a estrutura do problema. A causa da briga pode ser raiva, ciúmes, inveja; pode ser a última noite, um fato longe no passado, uma TPM repentina. Para cada causa relativa, podemos traçar a origem, passar por anos de terapia, tomar remédio, compreender, refletir, reprogramar. No entanto, depois de 578 causas resolvidas, sempre aparecerá mais uma, e outra, e outra… A saída não-causal vem na forma de um pulo para além de nossa coerência, uma quebra dentro de nossas tentativas de construir uma configuração ideal.

Nossos mais complicados problemas têm a densidade da nuvem que acabou de cruzar o céu, a seriedade de um palhaço bêbado, a solidez de um holograma. Como em um filme, sua qualidade de vividez e brilho ofusca nossos olhos e os deixam girando como no estágio REM (rapid eye movement) do sono. Enquanto nossos olhos se perdem, nos debatemos, reagimos, procuramos soluções. Não sabemos que basta encará-la, com olhos de sorriso, para que a complicação se mostre onírica.

[Gustavo Gitti, no blog Não Dois, Não Um]

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